A história começa assim: era dia 5 de setembro de 2015, fui comprar uns ténis da Adidas e a loja oferecia a inscrição para a Meia Maratona ou para a Maratona de Lisboa (o freguês é que escolhia onde se queria inscrever).
Confrontada com a oferta não tive muito tempo para pensar e, na realidade, a recuperar da anemia, nem sequer tinha planos para fazer provas até ao final do ano. Pedi então que a loja me inscrevesse na meia maratona, pareceu-me sensato.
Depois resolvi partilhar este episódio com alguns companheiros de corrida e começo a ouvir “meias maratonas já tu fizeste!”, “oferecida? isso merecia era a inscrição nos 42km”… Ora aquilo começou-me cá a ferver e num impulso ligo para a loja e pergunto se seria possível alterar ainda a inscrição para os 42km. Não me deram a certeza absoluta mas, em princípio sim. Voltei a ligar uns dias mais tarde, só para confirmar que o meu acesso de loucura tinha resultado de facto na inscrição nos 42km e informaram-me que as inscrições eram realizadas por um departamento central, não tinham como dar-me a informação exata, e mais uma vez ouvi “em princípio sim”.
No fundo agarrei-me àquele “em princípio sim” e fiquei com a esperança secreta de que fosse um “afinal não” e lá iria correr os 21km de uma prova onde no ano anterior tinha feito a mini-maratona de 6 km, e portanto seguiria um rumo normal, lógico e ao meu alcance…
Já só me caiu a ficha da dimensão daquilo em que me tinha metido quando recebi o e-mail com a confirmação da inscrição e o número do dorsal, 19 dias antes da prova, no dia 30 de setembro!
Não estava preparada, não tinha tempo para me preparar, mas também não tinha feitio para desistir sem sequer tentar. A preparação física no fundo era relativa, desde o início do ano que corria religiosamente 3 vezes por semana. A questão é que fazer 42 km implica treinar a distância e, no meu caso, o máximo que tinha corrido até então eram 23 km. Restava-me tempo para tentar dois treinos longos e foi o que fiz: 27,7km e 36,7km, nas duas semanas que antecederam a prova.
Ouvi muitas, mas mesmo muitas opiniões/palpites: "não consegues", "és maluca", não estás bem", "txi... caraças!", "não te metas nisso", "basta acreditar", "tu és capaz", "interessa é acabar"... e tenho que confessar que andei 19 dias a pensar que raio de objetivo poderia eu traçar para mim:
1) Terminar dentro das 6h do tempo regulamentar?
2) Não completar a prova, mas bater o meu recorde na distância?
3) Sobreviver????
E mesmo em 19 dias nunca me passou pela cabeça conseguir isto, desta forma: correr durante 42 quilómetros, 195 metros, com um tempo de chip de 04h31m31s.
Nada acontece por acaso, e neste caso eu diria mesmo que houve 2 fatores absolutamente decisivos para este desfecho:
1) Eu dei por mim a iniciar aquele prova a QUERER terminar, nem que tivesse que andar, rastejar até à meta, o que fosse preciso!
De tanto querer aguentei a dor que se instalou na minha anca direita logo ao km 12 e fiz de tudo para minimizá-la: variar a passada, encharcar-me de água fria, assobiar para o lado.
De tanto querer ao km 23 quando dei por mim a pensar "#$%&/*#$ “ainda falta uma meia maratona para ver fim a isto” respirei fundo e fui buscar os pensamentos guardados para "o fundo do poço" ou "a parede": os meus filhos, pensei tanto nos meus filhos...
De tanto querer deixei de olhar para os quilómetros que AINDA faltavam e passei a olhar para os que SÓ faltavam.
2) A companhia e o apoio. Na noite anterior lembrei-me que não havia de ir sozinha. Peguei numa caneta e na t-shirt que ia levar para a prova e escrevi os nomes das mais de 40 pessoas com quem costumava treinar, havia de levá-los a todos comigo!
Quis o acaso que aos primeiros minutos de prova, entre 4000 pessoas, eu fosse encontrar o Bruno Rodrigues, companheiro de correrias em Évora, um dos nomes na camisola. Encontrámo-nos e resolvemos ali fazer aquilo juntos, enquanto desse. Deu até ao km 38, depois o Bruno seguiu. Conversámos boa parte do caminho, rimo-nos muito, principalmente de nós, partilhámos as dores e as dúvidas e incentivámo-nos a toda a hora. E para mim, foi fundamental ter numa prova aquilo que tenho quando treino: a companhia de amigos, a boa disposição, o espírito de entreajuda e companheirismo.
Contou tanto a presença do Bruno quanto as palavras de incentivo e o apoio da minha família, dos meus amigos corredores e não corredores, que me foram chegando até aos últimos minutos antes da prova iniciar (por mensagens e telefonemas). Fizeram tanto pelo meu espírito durante a prova, como fizeram os géis, a frutose, os figos secos, as barritas, o powerade e a água pelo meu físico.
Tive ainda a sorte louca de nos irmos cruzando uma série de vezes com o pacer das 4h30. Os pacers são pessoas contratadas pela organização que levam um tempo de prova definido, vão sinalizados com uma bandeirola e os corredores podem acompanhar para terem a garantia que cumprem aquele objetivo de tempo. E aquele homem era um espetáculo de pessoa!
No início da prova gritei-lhe “este é o meu homem!”, numa analogia à expressão inglesa “that’s my man” querendo dizer aquela pessoa estava prestes a fazer algo espetacular e que eu não o queria perder de vista. Talvez tenha achado graça à expressão e sempre que nos cruzávamos tinha uma palavra de incentivo para nos dar e eu voltava a repetir “este é o meu homem”– ele ria-se e ainda me disse em tomo jocoso “olhe que se a minha mulher a ouve estou metido em chatices”. Foi de tal forma interiorizada aquela frase que no fim da prova vejo uma mulher dirigir-se a mim a agradecer-me e a pedir que agradecesse ao meu marido, porque sem ele e sem o seu incentivo ela nunca teria acabado a maratona. Tive uns segundos em silêncio, a pensar que conversa seria aquela e larguei uma sonora gargalhada quando percebi que a senhora pensou que o pacer, “o meu homem”, era o meu marido… Lá lhe expliquei que não e o porquê da expressão. A senhora terá ficado a chamar-me maluca, mas ainda se riu!
Como é que foi a maratona? Não foi como planeada, porque não levava um plano. Não a executei como previsto, porque não levava uma previsão. Á semelhança de todo o meu percurso na corrida, foi uma coisa que fui fazendo. Podia ter corrido mal ou podia ter corrido melhor? Não sei! Sei que foi uma aprendizagem, foi dura, foi dolorosa, foi extenuante, foi irrepetível, foi glorificante...
Cruzar a meta? Não dá para explicar, não vem nos livros: avassalador talvez seja um bom adjetivo.
Depois do martírio que foi terminar a primeira meia-maratona, no início de dezembro de 2014, impunha-se que 2015 me trouxesse coisas bem melhores.
Na realidade 2015 trouxe-me muita coisa. Entre aquelas que valem a pena relembrar, porque de facto marcaram viragens na minha forma de estar, o desafio de correr 100 dias em 2015, está no topo da lista.
As 3 regras simples, mas de ouro, vieram para ficar: #1 Não deixar passar 3 dias sem correr. #2 Correr pelo menos 3 vezes por semana. #3 NUNCA desistir”
O facto de já nesta altura correr quase sempre em grupo foi um incentivo para os treinos regulares, mas também para a loucura das provas.
Quando treinamos em grupo, os desafios são maiores. Onde há muitos objetivos diferentes, há sempre muitas propostas de treino: treinos rolantes, velocidade, séries, distâncias curtas, médias, longas, rampas, alcatrão, serra, de madrugada, à tarde, à noite, e por aí adiante. A mesma diversidade é depois extensiva às provas em que vamos sendo desafiados a participar: estafetas de 2km, provas de 5km, 10km, meias-maratonas (21km), provas com obstáculos e até a maratona (42km).
O primeiro semestre de 2015 foi muito duro, para além dos treinos regulares, em 4 meses participei em 8 provas, entre as quais 2 meias maratonas (provas de 21 km). Nunca tive resultados espetaculares, mas a verdade é que em vez de melhorar, houve provas em que os resultados na distância não equivaliam, nem superavam resultados anteriores e a meia maratona de Lagos, em maio, foi o verdadeiro descalabro. Sentia cansaço, mas achava normal. Muitos treinos, os miúdos pequenos, alguma falta de horas de sono, depois o calor, enfim, muitos argumentos!
Foi preciso uma consulta, um pedido de análises de rotina para a médica de família me perguntar “não tem sentido cansaço?”. Lembro-me de lhe ter respondido com outra pergunta, “trabalho, tenho 2 filhos e corro, não é normal andar cansada?”, “mas também tem uma anemia, sabia?”.
Eu sei que é parvoíce, mas fiquei contente! “A sério?! Então ando cansada por causa da anemia, então se a anemia for tratada passa-me o cansaço?”. Fiquei radiante porque no fundo já me tinha convencido que tinha limitações físicas para a corrida, aquele pensamento do tipo: “convence-te que não dás mais que isto, poupa-te, os treinos só vão servir para te cansar as pernas, não-dás-mais!” E afinal havia uma esperança no fundo do túnel… a cura!
Os meses de verão foram um martírio! Calor + anemia = não está escrito em lado nenhum. Ouvia-me a ofegar enquanto corria, sentia faltar-me o ar, mas assumi o compromisso de não deixar de treinar. Corria menos quilómetros, corria tão devagar quanto necessitava para conseguir respirar sem parecer que estava a ter um ataque de asma, evitava as horas de calor, preferia correr à noite. Nesta fase andava um outro companheiro de corridas mal de um joelho e outro a queixar-se de excesso de peso. Como nada disto nos leva a capacidade de rir de nós mesmos juntámo-nos imensas vezes numas corridinhas que carinhosamente chamávamos “do coxo, do gordo e da anémica”.
Passei a comer a todas as refeições alimentos ricos em ferro e outros ricos em vitamina C para ajudar a fixar o ferro (muita, muita, muita beterraba ralada ou cozida, espinafres de todas as maneiras e feitios, agrião, carnes vermelhas) e tomei re-li-gi-o-sa-men-te as ampolas de ferro que me foram prescritas.
Foram 4 meses de luta, luta aplicada! A anemia era ferropriva, os níveis de hemoglobina e ferritina estavam abaixo dos valores normais e a verdade é que por natureza sempre tive estes valores muito baixos, sempre próximos do valor mínimo dos intervalos e, portanto, o objetivo era que voltassem a estar dentro do intervalo.
No final de setembro já me sentia francamente melhor, tinha recuperado algum ritmo e até já me tinha inscrito em provas que para mim eram importantes. Se recuperasse ia tentar fazê-las o melhor que pudesse. As análises, entretanto, confirmaram valores sempre baixinhos, mas já dentro do intervalo. E foi no fundo mais uma das achegas na mudança da minha alimentação: há vegetais que já não saem da lista de compras semanal.
Foi nestes planos que fiz, nesta esperança de melhorar a que me agarrei, que entre outubro e dezembro de 2015 dou por mim inscrita em mais 5 provas: a prova de atletismo de Viana do Alentejo (a minha primeira e onde espero poder regressar sempre!), a mítica São Silvestre de Lisboa, onde acabei por bater o meu recorde pessoal dos 10 km, 2 meias maratonas, entre as quais a de Évora, onde bato o meu recorde pessoal aos 21km e nos 42 km da maratona de Lisboa, a primeira e única prova da distância que fiz até hoje.
Mas como é que alguém em baixo de forma, a fazer treinos curtos e vagarosos se inscreve para uma maratona: 42km! Como? Porquê? Essa é outra história, que começa assim “um dia fui comprar uns ténis novos…” (continua).
A mãe da Maria sempre correu. Quero com isto dizer que comecei a correr quando a Maria tinha pouco mais de um ano, agora com 3 anos, lembra-se desde sempre de me ver equipar e sair para os meus treinos e provas. Assim que me vê calçar os ténis, não se abstêm de me perguntar “mãe, tu não vais correr?”.
Com o Mateus foi diferente, até aos 5 anos teve uma mãe dedicada às rotinas casa-trabalho-trabalho-casa, a quem apertava a barriga gorda e adorava perguntar se estava grávida e que, de repente passa a ter a mais qualquer coisa na agenda, que a faz sair de casa e não estar 100% às ordens dos pequenos e adoráveis críticos ditadores.
3 e 7 anos são aquilo que muitos chamam “idades complicadas”, na verdade todas serão, todas terão as suas complicações, mas estas são exigentes, são birrentas, são muito dependentes, mas também são muito plásticas, moldáveis, diria eu.
Se me perguntarem se eles não reclamam quando percebem que vou sair para treinar ou para uma prova, claro que sim, muitas vezes (sem dramas) e ainda bem! Não sou dispensável, nem substituível na vida deles – sou A mãe. É suposto que sintam a minha falta, que reclamem assim como é perfeitamente natural que ainda não percebam o bem que faz à mãe ter “os seus momentos”.
A logística e o suporte familiar que isto implica (e que sei que nem toda a gente arranja com facilidade) é outra matéria, não menos importante, mas não sobre o que quero escrever hoje. O que poderá interessar é que com 3 e 7 anos ainda não tiveram de ficar sozinhos para a mãe ir correr! Nem perto disso. Ficaram sempre muito bem acompanhados ou pelo pai, ou pelos avós e bisavós, ou pelos padrinhos, ou por uns amigos 5 estrelas, ou pela ama, ou simplesmente na escola e em atividades extracurriculares. Nunca, por um segundo, lhes faltou nada pelo simples facto de eu estar a correr. Poderá ter-lhes sobrado frustração por não me conseguirem demover, mas capricho, por capricho, que ganhe o meu que também mereço.
Reclamações e caprichos à parte, os meus miúdos gostam da mãe corredora que têm há 2 anos, senão por mais motivos, pelo menos por estes três que se seguem:
Eles fazem parte do meu mundo da corrida. Há muitas maneiras de fazer isto. Em alguns treinos eles podem correr também ou acompanhar de bicicleta, trotineta e afins. Dependendo do circuito onde se corre, é possível estar a fazer um treino e tê-los por perto e claro antes do exercício terminar, fazer um sprint onde eles ganham (e a mim não me resta senão continuar a treinar para os superar…). O Mateus particularmente, com 7 anos, consegue com facilidade fazer 30 minutos de exercício entre corrida e caminhada. Não acontece com regularidade, mas já aconteceu uma ou duas vezes, em grupo, e ele adorou. Por outro lado, não raras vezes, em particular as provas de estrada, já têm também programa para a pequenada, corridas infantis, em que os miúdos adoram participar. É uma questão de lhes ir dando também oportunidade de se integrar no meio. E convenhamos é uma coisa fácil de lhes explicar (infinitamente mais do que aquilo que fazemos no trabalho, por exemplo!). Quando não se podem integrar de maneira tão efetiva na corrida, como é o caso da Maria ainda com 3 anos, não raras vezes, é no pós-treino que “brincamos à ginástica” e alongamos os três em grande galhofa. Além disso podem sempre ir esperar-nos aos metros finais de uma prova, acompanhar-nos, aplaudir, gritar por nós e ver-nos cortar a meta com aquele ar de satisfação de quem acaba de se sagrar atleta olímpico medalhado, ainda que tenha chegado nos 10 últimos!
Mãe que corre em grupo faz novos amigos… e os filhos também! Ora porque a prova, ou treino longo combinado com o grupo mete almoçarada, ora porque há um aniversário e a corrida mete bolo no final, ora simplesmente porque é preciso hidratar no pós treino, a verdade é que a vida do corredor de rua tem muito de… boémio! Se calhar não é preciso chegar a tanto, mas o convívio faz parte da corrida em grupo e naturalmente os miúdos estão, sempre que possível incluídos. Onde há muita gente, acabam por haver também outras crianças e com isto ganhamos a sua bênção. Quando à pergunta “vão haver outros meninos, mãe?” a resposta é afirmativa, então podemos ir correr e o mais depressa possível para que o convívio não tarde.
Eles acham que tenho SEMPRE hipótese de fazer pódio e, em todo o caso, adoram as medalhas de finisher. “Ganhaste mãe?”, esta era a pergunta milionária sempre que regressava a casa vinda de uma prova (2 anos depois já não é tão frequente!). É difícil perceber como raio é que tanto treino não dá direito a ir às provas fazer pódio e aquela máxima do “o que importa é participar” é uma seca. Mas a verdade é que as medalhas de finisher já lhes fazem as delícias. O Mateus já chegou a carregar umas quantas para a escola para mostrar orgulhoso, aos colegas, os feitos da mãe. A Maria prefere usá-las como colares majestosos nas suas indumentárias de princesa. Dão para todos os gostos.
Qual é o miúdo que não adora correr? Eles compreendem-nos, não nos julgam, serão sempre os nossos fãs da primeira linha. Mais do que tudo não merecem ser “usados como desculpa”, disso é que é eu não me perdoaria.