A proximidade da passagem de ano tem este efeito generalizado de nos encher de vontade de fazer promessas de mudança.
Pessoalmente não me lembro de ter começado nada significativo para mim no dia 1 de janeiro de que ano fosse.
Lembro-me sim de um março em que decidi começar a comer de forma diferente, de um junho em que decidi começar a fazer caminhadas, de um setembro em que comecei a correr, de um agosto em que me inscrevi numa maratona.
Aconteceu-me ter vários anos novos dentro do mesmo ano.
Dia 1 de janeiro é um bom dia para dormir até mais tarde, para continuar a comer e a beber o que sobrou do jantar de 31 de dezembro, para se prolongar o convívio da noite anterior, para curar uma ressaca, para se dar um passeio. Para começar qualquer coisa verdadeiramente transformadora para nós é tão bom o dia 1 de janeiro, como o dia 3 de março, 27 de julho, 14 de outubro ou qualquer outro.
O ano novo das resoluções, das coragens, das valentias, das firmezas está dentro de nós, não está marcado no calendário, não acontece por decreto.
Quando derem as 12 badaladas pulem da cadeira, comam as passas, peçam os desejos, façam as promessas, o que preferirem. O verdadeiro ano novo só vai chegar quando cada um de nós quiser verdadeiramente que ele aconteça e ás vezes até, quando menos se espera.
O meu último ano novo começou dia 27 de julho de 2014 e nunca mais acabou.
Este ano, desde que corro, senti pela primeira vez a tentação de desistir numa prova.
Foi durante o Louzã Trail, na prova +25km. Convenci-me que seria prova para completar em 04h30 (ingénua e inexperiente nas lides do trail).
Fui acumulando uma série de erros ao longo da prova, entre os quais recordo com carinho…:
- Levar os ténis errados que me valeram uma valente dor nos pés (a roçar o insuportável, juraria a quem me perguntasse que não teria uma única unha nos dedos quando me descalçasse e afinal só caiu uma umas semanas depois)
- Fiar-me nos abastecimentos de 5 em 5 quilómetros, alheia ao facto que uns serem apenas líquidos e inconsciente quanto ao tempo que pode significar chegar e um abastecimento sólido ao outro, não levei alimentação suficiente
- Despir a camisola de tanto calor optar por correr apenas de top, o que me valeu uma assadura em condições na zona lombar, provocada pela mochila
- Carregar durante 27 penosos km dois bastões com os quais só tinha treinado 2 vezes
Quando já levava 3h30 de prova, perto do km 17 assumi que iria desistir: a juntar às dores nos dedos dos pés e à assadura nas costas, também já tinha caído e, a cereja no topo do bolo, comecei a sentir uma dor tremenda num ligamento do tornozelo. Estava montado todo um cenário do calvário dos tempos modernos.
As dores eram de facto muitas. Despedi-me da Carla que já vinha a carregar comigo havia uns bons quilómetros e assumi: eu de-sis-to! Ela deu tudo por tudo para me fazer mudar de ideias, mas não me demoveu, ela avançou e eu voltei para trás.
O Gabriel passou por mim em sentido contrário e perguntou apreensivo “lesionaste-te?” e eu respondi de olhos no chão “não, mas não aguento mais” (nem vi que era ele!).
A decisão doeu tanto que foi aí que chorei, doeu de tal maneira que por minutos deixei de sentir as dores do corpo. O suficiente para desistir de desistir.
Respirei fundo, limpei as lágrimas e falei comigo mesma “Não dói assim tanto pois não? Devagar. Só até ao próximo abastecimento”.
Voltei a encontrar o Gabriel e Quim Zé um pouco mais tarde e recomeçou o trabalho de equipa que me tinha trazido até ali com a Carla, cada um a puxar à vez, cada um a esperar à vez. E assim passaram outras 3h30, até que chegámos à meta.
7 horas, foi o que precisei para completar aquela prova. Mas as 7 horas foram o menos relevante.
Precisei acreditar que era possível terminar.
Precisei redefinir prioridades, era mais importante terminar do que cumprir um objetivo de tempo (completamente irrealista).
Precisei pedir comida a outro corredor.
Precisei relativizar a dor.
Precisei avaliar que nenhuma das dores que sentia comprometiam a minha saúde.
Precisei querer não desistir.
De lá para cá tenho pensado muito no significado de desistir.
Acho que encontrei uma definição muito própria, muito minha. O meu entendimento diz-me que há uma grande diferença entre desistir e vermo-nos impossibilitados de prosseguir.
Só peço que a sorte me proteja e eu nunca me veja impossibilitada de prosseguir, porque se depender de mim, não foi em 2016 que desisti, não há de ser tão cedo que desisto: que renuncio a atingir cada um dos meus objetivos, que abro mão de chegar de pé, e por meios próprios, onde me propus, ainda que isso implique, por momentos, sofrer, suar ou chorar.
Desistir é não querer continuar (esta vem no dicionário).