Isto de correr, tem muito de penar. É verdade e quem disser que não, está a mentir.
E por isso é legítima a pergunta: MAS POOOORQUÊEEEEEEEE?
A determinada altura todos nos perguntamos isto. E hoje deu-me pra isso. Ia a correr, a penar e a pensar: “porquê?”. Por que raio uma pessoa se submete de livre vontade a tomar uma ação que sabe que lhe vai custar, que lhe sai do pelo. Nem tinha a desculpa de me ter comprometido com alguém, ou de me sentir na obrigação de responder a um objetivo marcado, nada.
E cheguei a uma conclusão simples: a isto chama-se ter um propósito.
- Porque é que vamos estudar (já naquela fase em que o ensino não é obrigatório), sabendo que vamos queimar as pestanas, que vamos fazer serões agarrados aos livros, aos trabalhos?
- Porque é que escolhemos trabalhar, quando podemos viver encostados a alguém, ou ao rendimento mínimo?
- Porque é que nos casamos, se podíamos viver solteiros e não ter de abdicar, nem ceder, nem partilhar?
- Porque é que temos filhos, se podíamos não ter de cuidar de ninguém, nem de limpar cocós, nem de passar noites em claro, nem de andar sempre com o coração nas mãos.
Porque temos uma expectativa e temos um propósito.
Porque acreditamos verdadeiramente que, de alguma forma, todas estas coisas que não são só rosas, em algum momento nos acrescentam. E com a corrida é igual. Há ali alguma coisa que nos acrescenta. Não é igual para todos, não acrescenta o mesmo, nem de igual forma. Mas acrescenta. Tal como estudo, trabalho, casamento e filhos a corrida traz-nos coisas boas para o corpo e para a cabeça.
E enquanto sentimos que o balanço é positivo, perdoamos o mal que sabe pelo bem que faz!
Hoje voltei à prova de Viana do Alentejo pelo 4º ano consecutivo. Foi a primeira prova que fiz, em 2014, e lembro-me como se tivesse sido ontem: do calor, das rampas, da malta da cueca de licra, das pernas arqueadas do Sr. Silva que nunca consegui apanhar e de uma série de outras coisas que só não me esqueço porque “a primeira vez” tem este efeito de ficar estranhamente pregado à nossa memória.
Voltei e voltou a ser especial. Não participava em provas desde março, 6 longos meses sem sentir a adrenalina, as borboletas na barriga, o nervoso miudinho que sinto sempre que vou a jogo (ainda que o jogo seja a feijões) – porra que tinha saudades! Foram 6 meses para não esquecer: uma senhora dona anemia, Évora – Fátima a correr em 4 dias, sarar as “feridas” e tentar recuperar a forma com cabeça e, pela primeira vez, com um plano de treinos (corrida, alimentação e reforço muscular).
Pela primeira vez, em muito tempo, fui para uma prova sem um objetivo de desempenho em mente. Nada, nada, nadica. Queria só voltar às provas, e meter a máquina a testes. Estava borradinha de medo. Ainda tenho bem escarrapachado na memória os sintomas da anemia: o cansaço, a dor nas pernas, a incapacidade de respirar e temia que ela estivesse só à espera de uma prova para me mostrar que ainda vive em mim (as análises dizem que não!). Tinha orientações claras da Rita: “comer”, “aquecer”, “não arrancar em modo bala”, “hidratar” e fui exemplar, cumpri à risca e ao minuto!
Mas havia um objetivo “secreto”: levar a melhor às rampas de Viana. Não interessava o resto. Em 2014 e 2015 não as consegui fazer a correr. O ano passado consegui e fiz uma prova fantástica (comparativamente aos meus resultados, naturalmente), mas estava em boa forma e com um bom ritmo de treino. Este ano tudo podia acontecer: vencê-las ou deixar-me vencer.
Os dois primeiros quilómetros a um ritmo controlado e eis que as maganas aparecem… tica, tica, tica, tica e faço a primeira rampa, sempre a correr, ofegante, mas vitoriosa. Mais umas voltas por Viana e aparece a segunda… tica, tica tica, mesmo a terminar a segunda rampa passo por uma atleta de Odemira que se desvia no seu passo de caminhada para eu passar e me diz “Força!”. Sorri-lhe, era muito novinha e disse-lhe “não é força, é cabeça!” e segui, ofegante mas vitoriosa.
Passado uns metros a jovem atleta voltou a passar-me na descida e diz-me “obrigada pela dica, é mesmo isso!”, sorrimos e lá continuámos até à meta. Fui sempre a vê-la mas já sem a conseguir passar (bela cabecinha!!!!).
Não cheguei a ver os resultados, não sei que tal me saí na classificação, mas hoje o foco era outro. O relógio diz-me que fiz mais 4 minutos que o ano passado e fiquei contente. Contente porque estou empatada com as rampas e com boas probabilidades de vir a ganhar vantagem, porque elas já não inclinam mais e eu tenho um ano inteiro para treinar. Contente porque nunca me senti no limite (a não ser no finzinho das rampas, mas quer-se dizer quem não se terá sentido!). E contente porque assisti a uma bonita entrega de prémios onde os prémios para pódios na geral e escalões foram, pela primeira vez, iguais para homens e mulheres e, para cereja no topo no bolo, tive oportunidade de aplaudir a minha amiga Fátima que vez um fantástico 2º lugar no escalão dela e uma belíssima prova.
A senhora que se segue? Trail Iber Lince de Barrancos, em novembro. Até lá, treinar o corpo com a cabeça!
Passou uma semana. Gostava de poder contar como foi o nosso desafio a correr entre Évora e Fátima de 9 a 12 de maio, num total de mais de 170 km, mas não posso.
Não que alguém me tenha proibido ou que me sinta incapaz de escrever detalhadamente sobre os factos de cada um dos dias. Sei de cor os percursos, o que comi e bebi, o que vesti, as vezes que me encharquei até aos ossos, os palavrões que gritei, as dores que suportei, as vezes que chamei pela minha mãe, que me lembrei dos meus filhos, as orações que repeti até à exaustão, as gargalhadas que dei, as vezes que agradeci poder estar ali, as palavras que escutei e os abraços que recebi, até sei de cor o que pensei e os erros que cometi. Simplesmente as palavras descritivas dos factos nunca fariam justiça ao que realmente foi vivido por cada um de nós.
Cada uma das 6 pessoas que fez este caminho terá uma versão muito própria, com um tronco comum: o desafio foi lançado há quase dois anos e foi a oportunidade de nos submetermos a um exercício de superação individual que nos motivou a todos, sem exceção, reforçada pelo simbolismo da vinda do Papa Francisco a Portugal, conferindo-lhe um carater único e irrepetível.
Não somos super-atletas, nem os maiores, nem os melhores, muito menos os únicos capazes do que quer que seja. Temos medo do que pode correr menos bem, e há sempre coisas que correm menos bem, não gostamos de falhar, e há sempre falhas mas, por princípio, propomo-nos a conseguir: acreditamos, sempre.
Como a sorte protege os audazes, tivemos a sorte de encontrar as pessoas certas umas para as outras, dos que iam correr (eu, a Rita, a Ana, o Zé Mateus, o Zé Luís e o João), aos que iam apoiar (as inexcedíveis Elsa e a Margarida), ficou claro que nada acontece por acaso.
O meu corpo habituado a correr nos últimos 3 anos, não estava treinado para este nível de exigência. Foram quatro etapas (48 km + 45 km + 45 km + 36 km) que feitas de forma isolada para quem já tenha corrido uma maratona de estrada não representam nenhum desafio particular, mas que cumpridas em quatro dias consecutivos desafiaram os limites do corpo, mas principalmente os da mente.
A dureza dos dias foi sendo minimizada pelas massagens de recuperação, o gelo, os anti-inflamatórios, as palavras de ânimo, o espírito de companheirismo, a alegria dos parceiros de jornada (cada um com as suas mazelas), pelo entusiasmo das famílias e dos amigos que iam acompanhando a nossa aventura, enviado mensagens, telefonando e que a cada palavra de encorajamento faziam renascer a vontade e a esperança de conseguir prosseguir no dia seguinte.
Nas etapas finais já a intercalar caminhada com corrida, orientada pela incansável Ana Vieira Lopes, percorri um verdadeiro calvário de dores, lágrimas e orações. Fi-lo por mim, por quem seguia no meu pensamento, por quem me acompanhava, pelos abraços que recebi, pelos olhares doces, pelas palavras de encorajamento e por quem me pedia todos os dias orações, por quem me entregava uma missão (e foram tantas!!!).
Descobri que a autocomiseração pode ser o nosso pior inimigo. Descobri que ainda não descobri os meus limites. Descobri que há histórias que não são possíveis de partilhar por palavras, porque são histórias de fé, de emoções, que contadas podem ter mil versões, mas só vividas é que fazem sentido.
Humildemente vos digo, não estive à altura do desafio. Desisti mentalmente, e em média, 2 vezes por dia. Mas na verdade, cumpri-o, e isso, nada nem ninguém me tira.